Miguel Sousa Tavares
Em
países onde o capitalismo, as leis da concorrência e a seriedade do negócio
bancário são levados a sério, a inacreditável história do BCP já teria levado a
prisões e a um escândalo público de todo o tamanho. Em Portugal, como tudo vai
acabar sem responsáveis e sem responsabilidades, convém recordar os principais
momentos deste "case study", para que ao menos a falta de vergonha
não passe impune.
1. Até ao 25 de Abril, o negócio bancário em
Portugal obedecia a regras simples:
Cada
grande família, intimamente ligada ao regime, tinha o seu banco. Os bancos
tinham um só dono ou uma só família como dono e sustentavam os demais negócios
do respectivo grupo. Com o 25 de Abril e a nacionalização sumária de toda a
banca, entrámos num período 'revolucionário' em que "a banca ao serviço do
povo" se traduzia, aos olhos do povo, por uns camaradas mal vestidos e mal
encarados que nos atendiam aos balcões como se nos estivessem a fazer um grande
favor.
Jardim
Gonçalves veio revolucionar isso, com a criação do BCP e, mais tarde, da Nova
Rede, onde as pessoas passaram a ser tratadas como clientes e recebidas por
profissionais do ofício.. Mas, mais: ele conseguiu criar um banco através de um
MBO informal que, na prática, assentava na ideia de valorizar a competência sobre
o capital.
O
BCP reuniu uma série de accionistas fundadores, mas quem de facto mandava eram
os administradores - que não tinham capital, mas tinham "know-how".
Todos
os fundadores aceitaram o contrato proposto pelo "engenheiro" - à
exceção de Américo Amorim, que tratou de sair, com grandes lucros, assim que
achou que os gestores não respeitavam o estatuto a que se achava com direito (e
dinheiro).
2.
Com essa imagem, aliás merecida, de profissionalismo e competência, o BCP foi
crescendo, crescendo, até se tornar o maior banco privado português, apenas
atrás do único banco público, a Caixa Geral de Depósitos.
E, de cada vez que crescia, era necessário um
aumento de capital. E, em cada aumento
de capital, era necessário evitar que algum acionista individual ganhasse tanta
dimensão que pudesse passar a interferir na gestão do banco.
Para tal, o BCP começou a fazer coisas pouco
recomendáveis: aos pequenos depositantes, que lhe tinham confiado as suas
poupanças para gestão, o BCP tratava de lhes comprar, obviamente sem os
consultar, acções do próprio banco nos aumentos de capital, deixando-os depois
desamparados nas perdas da bolsa;
Aos grandes depositantes e amigos dos
gestores, abria-lhes créditos de milhões em "off-shores" para
comprarem acções do banco, cobrindo-lhes, em caso de necessidade, os prejuízos
do investimento.
Desta
forma exemplar, o banco financiou o seu crescimento com o pêlo do próprio cão,
aliás, com o dinheiro dos depositantes - e subtraiu ao Estado uma fortuna em
lucros não declarados para impostos.
Ano após ano, também o próprio BCP declarava
lucros astronómicos, pelos quais pagava menos de impostos do que os porteiros
do banco pagavam de IRS em percentagem. E , enquanto isso, aqueles que lhe
tinham confiado as suas pequenas ou médias poupanças viam-nas sistematicamente
estagnadas ou até diminuídas e, de seis em seis meses, recebiam uma
carta-circular do engenheiro a explicar que os mercados estavam muito mal.
3.
Depois, e seguindo a velha profecia marxista, o BCP quis crescer ainda mais e engolir
o BPI.
Não
conseguiu, mas, no processo, o engenheiro trucidou o sucessor que ele próprio
havia escolhido, mostrando que a tímida "renovação" anunciada não
passava de uma farsa. Descobriu-se ainda uma outra coisa extraordinária e que
se diria impossível: que o BCP e o BPI
tinham participações cruzadas, ao ponto de hoje o BPI deter 8% do capital do
BCP e, como maior acionista individual, ter-se tornado determinante no processo
de escolha da nova administração... do concorrente! Como se fosse a coisa mais
natural do mundo, o presidente do BPI dá uma conferência de imprensa a explicar
quem deve integrar a nova administração do banco que o quis opar e com o qual é
suposto concorrer no mercado, todos os dias...
4.
Instalada entretanto a guerra interna, entra em cena o notável comendador
Berardo, ele é só o homem que mais riqueza acumula e menos produz no país
(protegido pelo 1º Ministro (a
Sócretina), que lhe deu um museu do Estado para armazenar a colecção de arte privada.
Mas, verdade se diga, as brasas espalhadas por Berardo tiveram o mérito de
revelar segredos ocultos e inconfessáveis daquela casa. E assim ficámos a saber
que o filho do engenheiro fora financiado em milhões para um negócio de vão de
escada, e perdoado em milhões quando o negócio inevitavelmente foi por água
abaixo. E que havia também amigos do engenheiro e da administração, gente que
se prestara ao esquema das "off-shores", que igualmente viam os seus
créditos malparados serem perdoados e esquecidos por acto de favor pessoal.
5.
E foi quando, lá do fundo do sono dos justos onde dormia tranquilo, acorda
inesperadamente o governador do Banco de Portugal e resolve dizer que já
bastava: aquela gente não podia continuar a dirigir o banco, sob pena de
acontecer alguma coisa de mais grave - como, por exemplo, a própria falência, a
prazo.
6.
Reúnem-se, então, as seguintes personalidades de eleição: o comendador
Berardo, o presidente de uma empresa
pública com participação no BCP e ele próprio ex-ministro de um governo PSD e
da confiança pessoal de Sócrates, mais, ao que consta, alguém em representação
do doutor "honoris causa" Stanley Ho - a quem tantos socialistas
tanto devem e vice-versa. E, entre todos, congeminam um "take over"
sobre a administração do BCP, com o "agréement" do dr. Fernando Ulrich,
do BPI..
E
olhando para o panorama perturbante a que se tinha chegado, a juntar ao súbito
despertar do dr. Vítor Constâncio, acharam todos avisado entregar o BCP ao PS.
Para que não restassem dúvidas das suas boas intenções, até concordaram em que
a vice-presidência fosse entregue ao sr. Armando Vara (que também usa 'dr.') -
fabuloso expoente político e bancário que o país inteiro conhece e respeita.
7.
E eis como um banco, que era tão independente, que fazia tremer os governos,
desagua nos braços cândidos de um partido político - e logo o do Governo. E eis
como um banco, que era tão cristão, tão "opus dei", tão boas
famílias, acaba na esfera dessa curiosa seita do avental, a que chamam
maçonaria.
8.
E, revelada a trama em todo o seu esplendor, que faz o líder da oposição?
Pede em troca, para o seu partido, a Caixa
Geral de Depósitos, o banco público.
Pede
e vai receber, porque há 'matérias de regime' que mesmo um governo que tenha
maioria absoluta no parlamento não se atreve a pôr em causa. Um governo
inteligente, em Portugal, sabe que nunca pode abocanhar o bolo todo. Sob pena
de os escândalos começarem a rolar na praça pública, não pode haver durante
muito tempo um pequeno exército de desempregados da Grande Família do Bloco
Central.
Se
alguém me tivesse contado esta história, eu não teria acreditado..
Mas
vemos, ouvimos e lemos. E foi tal e qual.
Miguel Sousa Tavares
(recebido por Email em 10/04/2014)