Um exemplo de ideia atraente para o cidadão individual
pode não o ser para um país: quem deve tem de pagar e não se deve endividar
mais, certo? Errado, lamento mas a realidade histórica demonstra precisamente o
contrário, pelo menos se se num país se pretender crescimento e emprego.
A austeridade pode funcionar como princípio que oriente a
vida de alguns indivíduos mas não passa no teste da aplicabilidade social ao
nível de milhões de pessoas e de vários países em simultâneo – nem hoje nem no
antes histórico. Ou seja, é uma ideia que não consegue cumprir o que promete.
O que é a austeridade? Para além de uma ideologia ou de
uma orientação espiritual (para os que acreditam no seu poder redentor)
pode ser definida, como o faz o Professor Mark Blyth da Brown University, como
uma forma voluntária de deflação na qual a economia se ajusta pela redução de
salários, preços e despesa pública para restaurar competitividade, a qual é (supostamente)
mais bem atingida através de cortar o orçamento do estado, dívida e défices.
Façamos agora um pequeno apontamento histórico que nos
pode ajudar a perceber porque a austeridade simplesmente não consegue dar-nos o
que nos promete.
Aproximando-nos do ano cinco da Era da Crise podemos já
apontar o que coloca no mesmo plano Portugal, Irlanda, Itália, Grécia, Espanha
(e agora Chipre): uma dica, não é a dívida do Estado o problema que os une, ou
melhor não era antes dos resgates formais e informais, pois desde que foram
sendo resgatados as dívidas públicas cresceram ainda mais – se o leitor tiver
dúvidas procure na Internet por “McKinsey Global Institute, Debt and
deleveraging” e veja a divisão de responsabilidades destes países às datas dos
resgates relativamente às percentagens das dívidas das famílias, empresas não
financeiras, financeiras e Estado.
Na realidade o que torna similar estes países (excepto a
Grécia) é que neles a crise não foi gerada por se gastar demais no sector
público (nem em Portugal, nem na Espanha, nem na Irlanda, nem na Itália, nem
em...Chipre). O elemento verdadeiramente unificador é que, em todos, os
seus problemas começaram na Banca (pelo excesso de crédito que acumularam e
pelas debilidades, por vezes quase criminosas, que assumiram) e hoje na banca
continuam devido às responsabilidades que todos os governos tiveram que assumir
pelos erros cometidos no sector bancário.
Durante uma década os bancos dos países centrais (e
periféricos) da União compraram e alavancaram com base em "imensa"
dívida da periferia do Euro - que agora vale imensamente menos. Ora quando
começaram a variar as percentagens de juro, mesmo por muito pouco que fosse,
muitos bancos viram-se em risco de insolvência (é esta a história de onde
estamos).
Como sugere Mark Blyth, salvar o sistema financeiro
global custou-nos (aos governos e seus contribuintes) entre 3 milhões de
biliões e 13 milhões de biliões de dólares e como teve de ser absorvido
proporcionalmente pelos diferentes orçamentos de estado acabámos por chamar à
crise uma "crise de dívida soberana" quando de facto foi e é uma
encapotada e bem camuflada "crise bancária".
Resumindo, não é que não haja dinheiro para pagar o
estado social, não há é dinheiro para salvar o sistema financeiro e pagar o
estado social. Isto porque, pelo menos no caso Europeu, o sistema financeiro
continua ainda muito debilitado e necessita que os orçamentos de estado baixem
os défices de modo a criarem almofadas que podem, ainda no curto e médio prazo,
vir a ser necessárias para suportar os ainda periclitantes dezassete sistemas
financeiros dos dezassete países da zona Euro. Enquanto essa almofada não for
criada há, como consequência, continuar a ter que pagar taxas mais elevadas aos
"mercados" para financiar os países do Euro (excepto a Alemanha,
porque é o vórtice de segurança que é financiado pela migração das poupanças da
insegurança dos outros Estados da Zona Euro).
Em cinco anos passámos do mote "demasiado grande
para falhar" para o "demasiado grande para salvar" – lembram-se
de Chipre e dos depósitos? A redução do défice já não chega só por si para
salvar bancos. Ou seja, porque os bancos europeus possuem demasiados problemas
para que possam ser resolvidos pelos Estados Europeus do Euro (que nem sequer
podem – por enquanto - imprimir dinheiro como os Ingleses, Americanos e
Japoneses) quem paga são os Estados que vêm a sua taxa de juro crescer ou não
baixar (não porque devam ser penalizados por não aplicar bem a austeridade, mas
porque não tendo capacidade para salvar o sistema financeiro são penalizados
pelo perigo de um problema que existe com a sua banca nacional, mas que não
conseguem ainda resolver).
Daí que "Austeridade" seja o preço que convém
ao sistema bancário, pois é um preço para “outro” (que não os bancos) pagar.
Neste caso o “outro” somos nós e os nossos impostos, os nossos salários e os
nossos empregos - porque há quem acredite que a austeridade faz o que promete,
o problema não está em acreditar nela, mas sim em não aceitar que simplesmente
não funciona – pois mesmo os processos históricos apresentados como sucessos
ocorreram em momentos em que um país em processo de austeridade apanhou a
boleia de todos os outros que se encontravam em crescimento (é este o paradoxo
da austeridade como instrumento económico, só funciona em modo parasitário).
Se já percebemos porque estamos a aplicar um pouco por
toda a Europa políticas de austeridade (porque os Estados da União acreditam
que necessitam de continuar a tentar salvar o sistema bancário Europeu e que
para fazê-lo cada país tem de fazer a sua parte), se também percebemos - por
experiência própria - que tal não é capaz de trazer solução para as empresas e
para as famílias mas apenas “potencialmente” para o sector bancário, porque
continuamos a insistir nela? Para compreender esta confusa situação temos de
olhar para os diferentes interesses nacionais em jogo no continente da
austeridade: isto é a Europa.
Para o sociólogo alemão Ulrich Beck a actual Chanceler
alemã Angela Merkel prática um princípio de orientação político que pode ser
designado por “Merkiavelismo”. Há quatro componentes que orientam a prática
do Merkiavelismo como política na relação entre a Alemanha e os restantes
Estados Europeus. O primeiro reside em posicionar-se entre os adeptos da
ortodoxia do Estado nação e os da construção Europeia, mas sem tomar posição
por nenhum dos dois. O segundo princípio assenta em gerir por via da
arte da dúvida e da hesitação, utilizando esses posicionamentos como meio de
coerção perante os restantes países, ora dando a entender que poderá ou não
intervir e deixando espaço para que os outros interpretem o que devem fazer
para que seja feito o que é pretendido. A elegibilidade nacional é o terceiro
princípio de actuação do Merkiavelismo e funciona como posicionamento face à
construção europeia, isto é, só se pode fazer na Europa o que for aceitável
fazer em casa (isto é na Alemanha). E, por último, a adopção da cultura alemã
da estabilidade alicerçada em tudo sacrificar (cortar e poupar) em nome da
estabilidade como um valor em si.
Como refere Beck o que vemos no final da crise do euro é
a construção europeia de uma Europa Alemã. No fim de contas, a defesa da
austeridade constitui um pilar da própria prática do Merkiavelismo na
construção e uma Europa Alemã pós-crise financeira e do Euro.
Mas, como o Presidente do Conselho de Ministros Espanhol
Mariano Rajoy referiu, tomando como exemplo Portugal, a austeridade não
basta. Pelo menos, não basta se o objectivo for o crescimento e a recuperação
do emprego. Como se depreende das palavras de Rajoy, já não se está a
discutir se a austeridade funciona (não funciona) mas sim se se mantém a
estabilidade política Europeia da Zona Euro assente nas políticas de
austeridade e defendida pelo país mais forte da zona, terceiro exportador
mundial de armamento, líder industrial global e porto de destino do aforro dos
euros dos restantes dezasseis países da zona euro – isto é a Alemanha.
Há hoje muitos comentadores e políticos na Europa que
acreditam que após as eleições alemãs do segundo semestre de 2013 a austeridade
se tornará mais leve e que tudo mudará para melhor, que é uma questão de tempo,
mas o problema é que o Merkiavelismo pode perdurar para além das eleições
alemãs e de Angela Merkel, porque não se trata de um projecto pessoal mas de uma
corporização num indivíduo de uma percepção cultural do lugar de um país na
Europa.
Com base nesta análise, a única saída para continuarmos a
ter uma União Europeia e não uma Europa Alemã é aumentar o conflito de posições
e extremar as escolhas disponíveis na mesa entre membros da União, ou como
sugere Paul Krugman a Portugal e, como nós podemos sugerir a Espanhóis,
Italianos, Irlandeses, Ingleses, Franceses, Dinamarqueses, Holandeses,
Eslovenos, Suecos, Gregos, Cipriotas, Lituanos, Eslovacos, Polacos (basicamente
todos os cuja opinião pública apoia mudanças claras de política nas opções
austeritárias dos seus governos e da política europeia): Just Say Nao (e é mesmo sem
acento, porque é uma mensagem que vem de um teclado do outro lado do
Atlântico).
Um mundo perfeito é impossível mas um mundo melhor
(começando por Portugal e a Europa) é claramente possível e apressadamente
necessário.
GUSTAVO CARDOSO - Jornal Publico - 10/04/2013 - 10:09
http://www.publico.pt/n1590766
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